São Bernardo de Claraval
Sermão 36 sobre o Cântico dos Cânticos
O CONHECIMENTO DAS LETRAS É BOM PARA A INSTRUÇÃO, MAS O CONHECIMENTO DA PRÓPRIA FRAQUEZA É MAIS ÚTIL PARA A SALVAÇÃO
I
Aqui
estou para cumprir o que vos prometi; aqui estou para satisfazer vosso
desejo; aqui estou, também, obrigado pela dívida que tenho para com
Deus, a Quem sirvo.
Como vedes, três são as razões que me impelem a pregar: o compromisso assumido, o amor fraterno e o temor a Deus.
Se me abstivesse de falar, pela minha
boca condenar-me-ia. Mas o que acontece se eu falar? Também neste caso,
corro o mesmo risco, o de ser condenado pela minha própria boca: por
pregar e não praticar o que prego. Ajudai-me, pois, com vossas orações,
para que eu possa sempre falar o que é necessário e, com minha conduta,
praticar o que prego.
Tinha vos anunciado o tema do sermão de
hoje: a ignorância, ou melhor, as ignorâncias, porque, como lembrais, há
duas ignorâncias: a de nós próprios e a de Deus. E vos aconselhava a
evitar uma e outra, pois ambas são perdição.
Hoje, procuraremos esclarecer melhor esse
assunto. Antes, porém, discutiremos se toda ignorância é condenável.
Parece-me que não, pois nem toda ignorância produz perdição: há muitas e
mesmo inúmeras coisas que se podem ignorar sem problema algum para a
salvação.
Se alguém, por exemplo, desconhece artes
mecânicas, como a carpintaria, a arte de edificação e outras que são
exercidas para a utilidade da vida neste mundo, acaso tal ignorância
constitui obstáculo para a salvação?
Também são muitos são os que se salvaram e
agradaram a Deus pela sua conduta e com seus atos sem as artes liberais
(e, certamente, são úteis e moralmente bons esses estudos). Quantos não
enumera a Epístola aos Hebreus (cap. XI), que se tornaram
agradáveis a Deus não com erudição, “mas com consciência pura e fé
sincera” (1 Tm 1,5). E agradaram a Deus com os méritos de sua vida e não
com os de seu saber. Cristo não foi buscar Pedro, André, os filhos de
Zebedeu e todos os outros discípulos, entre filósofos; nem em escola de
retórica e, no entanto, valeu-se deles para realizar a salvação na
terra.
Não é porque fossem mais sábios do que todos os homens – como diz de si mesmo o Eclesiastes
(1, 16) -, mas, por causa de sua fé e de sua benignidade, o Senhor os
salvou e fez deles santos e mestres. Pois os Apóstolos mostraram ao
mundo o caminho da vida, não com sublimidade de discurso, nem com
palavras eloqüentes de sabedoria humana, mas pelo modo como aprouve a
Deus: pela estultícia de sua pregação, aprouve a Deus salvar os que
crêem, porquanto o mundo com sua sabedoria não O conheceu (cf. 1 Cor 2,
1; 1, 17-21).
II
Posso estar dando a impressão de querer
lançar em descrédito o saber, de repreender os doutos, de proibir o
estudo das letras. Longe de mim, tal atitude! Conheço muito bem o
inestimável serviço que os homens doutos têm prestado à Igreja: seja
refutando os adversários dela, seja na instrução dos simples.
Com efeito, o que li na Sagrada Escritura
foi: “Como rejeitaste o saber, também Eu te rejeitarei, para que não
exerças Meu sacerdócio” (Os 4, 6). E mais: “Os doutos resplandecerão com
o brilho do firmamento, e os que tiverem ensinado a muitos a justiça,
brilharão como estrelas em perpétuo resplendor” (Dn 12, 3).
Mas, por outro lado, li também: “O saber incha” (1 Cor 8, 1).
E, finalmente: “No acúmulo de saber, acumula-se a dor” (Ecl 1, 18).
Vede que há saberes e saberes: há um
saber que produz o inchaço e há um saber que contrista. Quero que sejais
capazes de distinguir qual deles é útil e necessário para a salvação: o
que incha ou o que dói? E não duvido que prefiras o que aflige ao que
incha, porque, se a saúde pela inchação é aparentada, pela aflição é
procurada.
Ora, quem procura, acaba encontrando,
pois “quem pede, recebe” (Lc 11,10). E é certo que Aquele que cura os
que têm o coração contrito abomina o inchaço dos orgulhosos, pois a
Sabedoria diz: “Deus resiste aos soberbos e dá Sua graça aos humildes”
(Tg 4,6). E o Apóstolo diz: “Exorto-vos, em virtude do ministério que
pela graça me foi dado, a não pretender saber mais do que convém, mas
saber com sobriedade” (Rm 12,3).
O Apóstolo não proíbe saber, mas sim
saber mais do que convém. E o que é saber com sobriedade? É cuidar de
aplicar-se prioritariamente ao que mais interessa saber, pois o tempo é
breve. Ora, ainda que todo saber, desde que submetido à verdade, seja
bom, tu, que buscas com temor e tremor a salvação e a buscas
apressadamente, dada a brevidade do tempo, deves aplicar-te a saber,
antes e acima de tudo, o que conduz mais diretamente à salvação.
Acaso não dizem os médicos do corpo que
parte da medicina é precisamente determinar a ordem dos alimentos: qual
deve ser ingerido antes, qual depois e o modo de os ingerir? Ora, mesmo
sendo bons os alimentos que Deus criou, tu os tornas nocivos se não
observas o modo e a ordem ao ingeri-los. Aplica, pois, aos saberes, o
que dissemos dos alimentos.
III
Mas o melhor é encaminhar-vos ao Mestre.
Não é nossa esta sentença, mas d’Ele; ou antes, é nossa porque a
aprendemos d’Aquele que é a Verdade. E diz: “Se alguém pensa que sabe
alguma coisa, ainda não sabe como deveria saber” (1 Cor 8,2).
Vede como não é aprovado o saber muitas
coisas se se ignora o modo de saber. Vede como o fruto e a utilidade do
saber consiste no modo de saber.
Mas o que é este modo de saber? O que, senão saber segundo a ordem, o amor e o fim devidos?
Segundo a ordem, isto é, priorizando o
que é mais necessário para a salvação; segundo o amor, isto é,
voltando-nos mais ardentemente para o que mais nos impele a amar;
segundo o fim: não por vaidade ou curiosidade ou objetivos semelhantes,
mas somente pela tua própria edificação e pela de teu próximo.
Há quem busque o saber por si mesmo, conhecer por conhecer: é uma indigna curiosidade.
Há quem busque o saber só para poder
exibir-se: é uma indigna vaidade. Estes não escapam à mordaz sátira que
diz: “Teu saber nada é, se não há outro que saiba que sabes” (Persius, Satyra 1, 27).
Há quem busque o saber para vendê-lo por dinheiro ou por honras: é um indigno tráfico.
Mas há quem busque o saber para edificar, e isto é amor. E há quem busque o saber para se edificar, e isto é prudência.
IV
De todos estes que buscam o conhecimento,
só os dois últimos não incorrem em abuso do saber, já que o buscam para
praticar o bem. Deles é que fala o salmo: “O saber é bom para quem o
põe em prática” (Sl 111, 10). Os demais devem ouvir a Escritura: “Quem
conhece o bem e não o pratica, comete pecado” (Tg 4, 17).
É como se, numa comparação, disséssemos:
tomar alimento e não digeri-lo faz mal. Um alimento indigesto, mal
cozinhado, produz maus humores e, em vez de nutrir o corpo, corrompe-o.
Assim também pode dar-se o caso de o estômago da alma, que é a memória,
ingerir muitos conhecimentos que não foram cozinhados pelo fogo do amor e
nem passaram para ser elaborados pelo aparelho digestivo da alma (no
caso, os atos e costumes), a fim de que a alma se torne boa pelo bom
conhecimento (o que pode ser atestado pela vida e pelos costumes). E
acaso um tal saber indigesto não deve ser considerado pecado, tal como
um alimento que se transforma em humores maus e nocivos? E os maus
humores do corpo não equivalem aos maus costumes da alma? E não virá a
sofrer de inchaços e cólicas de consciência quem conhece o bem e não o
pratica?
Acaso não se lhe aplicará a sentença de
morte e condenação, toda vez que lhe vier à mente a palavra de Deus: “O
servo, que conhece a vontade de seu senhor e não a pratica, torna-se
digno de muitos açoites” (Lc 12,47)?
E não será em nome desta alma, o pranto
do profeta (Jr 4,19): “Doem-me as entranhas, doem-me as entranhas”?
Gemidos geminados que – salvo outra interpretação – apontam para o que
dizíamos: o profeta fala de si mesmo, pois estava pleno de saber,
inflamado de amor e, desejando intensamente transmitir esse saber, não
encontrou quem se interessasse por ouvir e teve de arcar sozinho com o
peso de um saber que não pôde comunicar. Chorou, pois, o zeloso doutor
da Igreja, tanto por aqueles que menosprezam a busca do saber que dirige
o bem viver, como pelos que, embora sabendo, no entanto, vivem mal. E,
por isso, o profeta repete seu lamento.
V
Compreendes agora quão verdadeira é a
sentença do Apóstolo: “O saber incha”? Por isso, convém que a alma antes
se conheça a si mesma, coisa que é requerida pela ordem e pela
utilidade.
Pela ordem, porque, para nós, o primeiro
conhecimento deve ser o do que somos; pela utilidade, porque tal
conhecimento não incha, mas humilha e serve de fundação para a
edificação. Pois o edifício espiritual que não tem seu fundamento na
humildade, não se agüenta em pé.
E para aprender a humildade, a alma não
encontra nada mais convincente do que descobrir-se a si mesma na
verdade. Deve-se, portanto, evitar a dissimulação, o auto-engano doloso,
deve o homem encarar-se de frente, evitando fugir de si mesmo.
Pois, defrontando-se a alma com a límpida
luz da verdade, encontrar-se-á muito diferente do que julgava ser e,
suspirando em sua miséria – uma miséria que já não pode esconder porque é
verdadeira e manifesta -, clamará com o salmista ao Senhor: “Em Tua
verdade me humilhaste” (Sl 119, 75). Como não se humilhará neste
verdadeiro conhecimento de si, ao dar-se conta da carga de seus pecados,
sob o peso deste corpo mortal, ao ver-se imersa em preocupações
terrenas, infectada pelos desejos carnais, cega, curvada, fraca, envolta
em mil pavores, angustiada ante mil dificuldades, sufocada ante mil
dúvidas, indigente de mil necessidades, inclinada ao vício, impotente
para as virtudes?
Onde está agora o olhar arrogante? Onde, a
cabeça orgulhosamente erguida? Não será ela ainda mais arremessada em
sua desolação, trespassada por espinhos? (Sl 32, 4). Que ela – diz o
salmista – derrame lágrimas, que chore e gema, que se volte para o
Senhor e clame em sua humildade: “Cura, Senhor, minha alma, pois pequei
contra Ti” (Sl 41,5).
Se ela se voltar para o Senhor, encontrará consolo, pois Ele é o Pai das misericórdias e o Deus de toda consolação.
VI
Eu, quando olho para mim mesmo, fico
imerso em amargura; logo, porém, que alço a vista para o auxílio da
misericórdia divina, suaviza-se meu amargor com a alegria da visão de
Deus e Lhe digo: “Minha alma está conturbada interiormente, por isso me
lembro de Ti” (Sl 42,7).
Basta um pouco de conhecimento de Deus
para experimentar que Ele é piedoso e solícito, pois, na verdade, Ele é
um Deus de bondade e misericórdia, que perdoa a maldade (Jl 2,13); Sua
natureza é a bondade e é próprio d’Ele perdoar e ter misericórdia
sempre.
Deus se dá a conhecer nesta experiência e
desta maneira salutar, a partir do momento em que o homem se reconheça
indigente e clame ao Senhor; e Ele o ouvirá e dir-lhe-á: “Eu te
libertarei e tu Me glorificarás” (Sl 50,15).
Assim, o conhecimento próprio é um passo
para o conhecimento de Deus. Vê-lO-ás em Sua imagem, que em ti se forma,
na medida em que tu, desarmado pela humildade, com confiança, irás
refletindo a glória do Senhor e, levado pelo Espírito de Deus, de
claridade em claridade, irás te transformando nessa imagem.
VII
Reparai, pois, como ambos conhecimentos
são necessários para a salvação, de tal modo que não pode faltar nenhum
dos dois. Pois, se desconheces a ti mesmo, não terás temor de Deus em
ti, nem humildade. Por acaso pensas que podes alcançar a salvação sem
temor de Deus e sem humildade?
(Neste momento, o auditório murmura: “Não, não!”).
Fizestes bem de indicar-me o “não”
absoluto de vosso juízo, ou antes, que não estais desprovidos de juízo…
Nem vale a pena continuar falando sobre o óbvio.
Mas, prestai atenção a um outro ponto…
Ou será melhor parar, por causa dos que
já estão pestanejando? Eu pretendia, em um só sermão, dar conta do que
tinha prometido: falar da dupla ignorância, e fá-lo-ia se não me
parecesse que este discurso já está demasiadamente longo para os que o
acham cansativo. E vejo alguns bocejando e outros dormitando. E não é de
admirar, pois a longuíssima vigília de oração que tivemos hoje os
desculpa.
O que direi, porém, daqueles que dormem
agora, mas dormiram também enquanto rezávamos os ofícios? Não quero,
porém, levar isto adiante e envergonhá-los, baste ter mencionado o fato…
Penso que de hoje em diante cuidarão de estar atentos, advertidos que
foram pela nossa correção.
Com esta esperança e em atenção a eles,
em vez de continuar, partamos, suspendendo por clemência o discurso, e
dêmos-lhe fim, embora não tenha atingido seu fim. Eles, por sua vez,
tendo sido objeto de nossa compreensão, associem-se a nós em glorificar o
Esposo da Igreja, Nosso Senhor Jesus Cristo, que está acima de todas as
coisas, Deus bendito pelos séculos. Amém.
* * *
São Bernardo de Claraval,
rogai por nós!
rogai por nós!
Fonte: Blog Ecclesia Una
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